Transformar pobreza em poesia é um desastre

O chileno Alejandro Aravena foi anunciado no último dia 18 como curador da próxima edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, a ser realizada em 2016. Assim, pela primeira vez em 15 edições, a direção artística da mostra ficará a cargo de um latino-americano.

Entre os dias 19 e 24 de julho, o arquiteto esteve com as filhas e a mulher, brasileira, no Rio, onde participou do evento Rio Academy.

Entre o sol invernal de Ipanema e a palestra realizada no MAM (Museu de Arte Moderna) carioca, Aravena, 48, conversou com a Folha.

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Os detalhes sobre sua proposta para Veneza, no entanto, se mantêm guardados em segredo. “Posso falar sobre tudo, menos sobre a Bienal”, pediu antes da entrevista.

Oficialmente, Aravena declarou que a mostra deve “priorizar arquitetos que, com inteligência, são capazes de fugir do atual status quo”.

“Gostaríamos de apresentar casos em que, apesar das dificuldades e, em vez de resignação e amargura, são capazes de fazer algo”, defende.

Com ares de estrela e conhecido por projetos de habitação social em comunidades pobres na América Latina, o chileno atua em realidades avessas à arquitetura.

Além de lecionar em Harvard entre 2000 e 2005 e ocupar nos últimos dez anos uma das cadeiras do júri do prêmio Pritzker –o Nobel da arquitetura–, Aravena mostrou conhecer a realidade política e arquitetônica do Brasil.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
 
Folha – Paulo Mendes da Rocha diz que as favelas são “um dos mais monumentais espetáculos de consciência urbanística”. Como podemos incorporar isso à arquitetura?

Alejandro Aravena – Precisamos entender o poder e as demandas desses lugares. Tendemos a ver as favelas como a incapacidade de fazer algo decente, algo como: “Como são pobres, é a única coisa que podem fazer”. Na verdade, sem nenhuma ajuda financeira do Estado, eles são capazes de conquistar uma geografia difícil e fazer suas próprias habitações, mostrando uma enorme capacidade para construir. Eu gostaria de canalizar essa força.
 
Como fazer isso?

Usando o poder do Estado para fazer um suporte, e assim construir o que não pode ser feito individualmente.

O recurso mais escasso em intervenções urbanas não é dinheiro, mas coordenação. A soma de projetos individuais não garante o bem comum. Para intervir em uma favela precisamos introduzir mais de uma coisa por vez, mas de forma coordenada.

Melhoramos o acesso ao transporte e, ao mesmo tempo, levamos esgoto, água e eletricidade. As pessoas continuarão a vir para as cidades. Isso é bom, mas o problema é a velocidade do processo, resultando em ocupações informais. Se não dermos uma base inicial, vamos cometer sempre os mesmos erros.
 
Qual é a sua sugestão para evitar esses erros?

Não fazer a casa toda. Se não há dinheiro para dar uma casa com ao menos 80 m², e temos apenas uma versão miniaturizada de 50 m², então sabemos que as pessoas expandirão no futuro.

Não farão isso com desenho, mas apesar do desenho. Se construirmos apenas metade da estrutura para prover as necessidades mais básicas, depois a própria capacidade de construção das pessoas permitirá atingir o patamar da classe média, expandindo para um pátio vazio ao lado.

Se você cria um sistema aberto, permite a realização do projeto individual e não tenta antecipar o que vai acontecer porque nunca vai adivinhar.
 
Não há o risco de criar uma estetização da favela?

Nunca transformo pobreza ou informalidade em poesia. Isso é realmente um desastre. Não tenho visão nostálgica sobre o humanismo da favela.

Assim, as intervenções não devem ter medo de não seguir a atmosfera da favela, porque aquilo foi a incapacidade de coordenar ações. Se você intervém em escala maior, deve criar uma nova aparência.

Essas intervenções não precisam fingir que são domésticas, senão vira falso contextualismo: “Se você está agindo em uma favela, você deve parecer com a favela”. É o oposto. Favelas são consequências de uma operação no nível do indivíduo, e não devemos nos sentir culpados por atuar em outra escala.
 
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Como você vê o programa Minha Casa, Minha Vida?

Não é poroso o suficiente, não é um sistema aberto para permitir a atuação individual. Em países pobres, não temos recursos suficientes, então por que insistimos em fazer a casa inteira? Não faz sentido.

Ir para um sistema aberto em vez de dar uma casa completa permite se concentrar no que é mais difícil –como as instalações hidráulicas– e oferecer espaço para a ação dos indivíduos, guiadas por uma forma inicial da casa.
 
Falta urbanidade no Minha Casa, Minha Vida?

Absolutamente. Uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas.

Essa formulação ideológica de que “sua casa é sua vida” não é verdadeira. Sua vida é a quantidade de oportunidades de trabalho, educação, transporte, lazer.

A casa permite se inserir nesse mapa. Então não faz sentido comprar terra onde não existem oportunidades e consumir todo o espaço disponível com habitação. Isso não é uma cidade. Nos espaços vazios outros serviços podem aparecer, com a coordenação de ações com os ministérios do Trabalho, do Transporte ou da Educação.

Assim cria-se um tecido urbano complexo o suficiente para se chamar de cidade e não só um acúmulo de casas.
 
Como a arquitetura pode lidar com questões econômicas?

Em países como os nossos, a política habitacional é orientada pela propriedade privada –quando se recebe o subsídio público, você se torna proprietário do imóvel.

Essa é a maior forma de transferência de dinheiro público para os bens de uma família. Portanto, pensar a casa apenas como um abrigo é um engano. De fato, trata-se de uma ferramenta para vencer a pobreza. Ter a própria casa é crucial.

O custo de uma casa numa favela chega a R$ 140 mil, mas porque não existe posse, você não pode ir ao banco para um empréstimo.

Quando você é um beneficiário das políticas públicas e se torna o dono de uma casa, você gostaria de ter esse bem valorizado o máximo possível.
 
Como vê o legado moderno brasileiro para a arquitetura?

O sonho utópico moderno de melhorar a humanidade com a arquitetura foi excessivo, ingênuo e ditatorial.

Mesmo assim, havia uma intuição acertada de melhorar a qualidade de espaços públicos abertos. Estamos sentados, sem pagar nada, em um lugar fantástico [no térreo do MAM, no Rio de Janeiro].

Para se corrigir desigualdades sociais, deve-se usar a cidade como atalho, e espaços públicos são extremamente importantes nisso.

Vivendo nos mesmos lugares, ganhando o mesmo salário, você consegue melhorar sua qualidade de vida usando a cidade. É por isso que a praia, os calçadões ou ruas fechadas nos finais de semana são tão importantes. Você, de graça, pode ter alta qualidade de vida. Cidades são movidas pelo o que podemos fazer para libertá-las.
 
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Fonte: Folha de São Paulo